O Cobrador
Ele passou a tarde inteira com o pensamento naquele problema, que aos olhos dele era um problema. Brigou consigo mesmo e lutou com outros problemas que também desafiavam seus neurônios.
Caminhava por uma calçada do centro da cidade, com uma das mãos no bolso e a outra tirando o suor do rosto constantemente. Estava apressado para chegar até sua condução, que ele mesmo havia estacionado a alguns quarteirões dali.
Acabara de sair de uma entrevista de emprego, a última de muitas outras que já havia feito naquele dia. Olhava o relógio constantemente e apertava o passo para não perder o horário. Ele estava a mais ou menos 2 horas de sua casa; logo iria escurecer, e ele sabia o que poderia encontrar.
Aquela rotina era frequente, das segundas às quartas-feiras. Desempregado há cerca de 14 meses, ele se apertava entre bicos e trabalhos noturnos que repugnava. Não gostava de trabalhar no ramo da cobrança, pois arranjava alguns inimigos nessa área. Estava realizando aquele trabalho há aproximadamente um mês, e seu receio era evidente ao andar sozinho após as 19:00hs. Só se sentia seguro em sua casa, mas também precisava chegar antes da esposa, pois não sabia o que o esperava.
Ele estava a cerca de 80 km de sua casa, por isso olhava o relógio constantemente, preocupado. Chegando ao seu destino, um Santana azul escuro, quatro portas, com alguns arranhões na lataria, pneus carecas e o porta-malas amassado. Olhava aquele problema e absorvia mais um, entre tantos que já conturbavam sua cabeça. No mesmo instante, lembrava da cena que proporcionou tal estrago. “Um carro preto atravessou o sinal e veio em direção ao seu carro, onde sua mulher ocupava o assento do passageiro. Ele engatou a marcha à ré e não olhou pelo retrovisor, atingindo uma caçamba de alguma construtora que havia colocado ali de forma irregular. Dentro do carro preto, havia jovens bêbados que acabavam de sair de um bar, localizado em algum lugar daquele bairro”.
Ligou o veículo e saiu com pressa, olhando para os lados e certificando-se de que podia seguir. Sua mulher estaria em casa em aproximadamente uma hora, por volta das 01:00. Apertava o passo e seguia pela avenida movimentada e agitada. No rádio, tocavam seus MP3 favoritos, que haviam sido selecionados com muito cuidado por ele mesmo. Gostava de ouvir músicas dos anos 60, entre Beatles e Bob Dylan. Era a única forma de tentar relaxar após um dia cansativo. Pensava nas cobranças que precisava fazer nos finais de semana, onde via crimes sob um ângulo que poderia levá-lo à cadeia. Seu chefe sempre dizia: “No ramo da cobrança, existem dois fatores importantes: primeiro, nunca, em hipótese alguma, ache que o devedor não tem dinheiro; segundo, nunca saia sem receber”. Os pensamentos do novato-cobrador o preocupavam.
O relógio despertava e o homem apertava o volante do Santana, olhando para a imensa fila de carros à sua frente. O despertar do relógio significava que sua mulher estava a meia-hora de casa, e ele não daria tempo de chegar antes dela. Pegou o celular e ligou para ela, mas a mensagem de resposta foi imediata: “Você não tem crédito suficiente para realizar essa ligação”. Havia sido um dia corrido, e o dinheiro que poderia ter usado para colocar crédito no aparelho foi usado para beber um suco e comer um salgado no meio do dia. No rádio, tocava a música “Help!” dos Beatles, e ele desligou o aparelho, de forma grosseira e impaciente. Já não conseguia ouvir mais, devido à preocupação que atormentava sua cabeça.
Seu pavor era devido a um cliente que não ficou satisfeito com um de seus trabalhos. Uma testemunha tinha conseguido escapar do local da “cobrança”. Ela estava armada e chegou de surpresa; um dos cobradores que o acompanhava havia sido baleado, e ele agradecia a Deus por ter sido ele. Não suportaria a ideia de deixar sua esposa sozinha; morrer estava fora de cogitação.
Após passar todo o trânsito, ele chegou em seu bairro e engatou as marchas como se fosse um dos corredores de rali. Com muita pressa e preocupação, ele dobrou a esquina de sua residência e um carro escuro dobrou a outra. Ele arregalou os olhos, atravessou a rua em sentido contrário e estacionou o carro na calçada. Saiu do veículo e abriu o portão baixo de ferro, que bateu contra a grade. Caminhou até a porta e, com a mão, percebeu que ela estava aberta. Então passou a mão no rosto, com o olhar baixo e lacrimejando, gritou: – Amorrrr. Não obtendo resposta, ele então foi até a cozinha e viu a torneira ligada. Sobre a mesa, a bolsa da esposa estava do jeito que ela costumava deixar quando chegava em casa.
Ele então questionou seus feitos, tudo o que havia feito naquele último mês, e com as mãos sobre a mesa e a cabeça baixa, pediu perdão a Deus em silêncio. Olhou para cima e, com olhos raivosos, apertou a toalha que envolvia aquela mesa e, em seguida, questionou o Todo-Poderoso: – Por quê?
Nesse mesmo instante, seus ouvidos escutaram a voz que ele tanto admirava.
- Amor, o que foi? Ele não podia entender, soltou a mão da toalha devagar e olhou para o lado. Nesse mesmo instante, sentiu o perfume de sua esposa, como se ela tivesse acabado de sair do banho. Sem entender muito bem, soltou a toalha e imediatamente foi abraçar sua mulher e pedir desculpas. Ela, sem entender muita coisa, perguntou o que aconteceu. O homem, pálido e com a boca aberta, respondeu gaguejando nas primeiras palavras:
- Nada, nada, amor. Ele imediatamente pensou em algo para dizer, pois sua esposa nem sonhava que ele poderia sequer matar uma mosca.
- Eu não aguento mais. Disse ele. – Já estou há mais de um ano procurando emprego e nem sequer uma gota de retorno. Eu não aguento mais, meu bem, esse trabalho como vigia noturno está me matando. Ela então o abraçou e pediu para que ele tenha paciência.
Ele abriu os olhos e pensou: o que havia acontecido, quem era que estava naquele carro, e por que ele estava virando a esquina daquele jeito?
Durante Uma Festa
Era entre 01:30hs e 02:00hs da madrugada; aquela festa estava me entediando. Era sempre a mesma coisa: aquelas pessoas forçando sorrisos, se cumprimentando sem ao menos se conhecerem. Realmente, eu preferia estar em casa assistindo a um jornal da noite, ou até mesmo um bom filme, ao invés de estar aqui, nesse lugar. Estava me sentindo meio deslocado. É uma dessas festas de alta classe, gente puxando o saco, e no final das contas, eu tinha que estar ali; eu era um desses puxa sacos, e gostaria muito de alcançar a diretoria da empresa. Não via outro modo, além é claro de trabalhar muito, era necessário frequentar ambientes sociais, se destacar meio a tantos outros com interesses parecidos, para não dizer iguais aos meus.
Ao olhar para vários conhecidos, pessoas familiares, pude perceber a presença de uma mulher linda, sozinha, de cabelos escuros, pele semi-clara, olhar penetrante, um batom quase que da cor da boca, muito atraente. Ela sabia que eu a olhava diretamente, mas não se incomodou; retribuiu o olhar de forma sutil e feminina, ao mesmo tempo em que direcionava seus olhos em minha direção, contornava a boca da taça com um dos dedos e sorria de lado sem mostrar os dentes, em um ritual que durou poucos segundos, até ela começar a caminhar em minha direção levando a taça que aparentemente estava com champanhe até a boca e continuando até chegar ao meu lado, dando a entender que gostaria de conversar.
Eu estava meio a uma guerra pessoal dentro de mim, com álcool na cabeça e sensações em conflito. Foi muito rápido e provavelmente um jogo de interesses; afinal, eu não era ninguém na festa, apenas um funcionário que acompanhava seus “amigos de trabalho” em um evento social, a minha presença não era nada de mais. Ela simplesmente sorriu me olhando nos olhos, certa de que eu iria aceitar seu convite; claro que não recusei. Não me deparo com situações iguais a esta todos os dias, eu tinha que acompanhar aquela mulher.
Fomos até a varanda do lugar, que tinha uma bela vista da entrada principal, com aquele portão grande e alto, árvores bem cuidadas contornando a via de acesso até a mansão, um gramado em volta e até uma fonte que ficava em frente à entrada principal, alguns carros de luxo estacionados ao lado e ao redor da via de acesso. O lugar não deixava o bom gosto a desejar, fazia jus às pessoas que ali estavam.
Ela ficou encostada no parapeito com um dos cotovelos, enquanto a outra mão segurava aquela taça de forma delicada e experiente. Eu fui o primeiro a falar, perguntando seu nome, claro.
Eu fiquei sem muita opção, pois estava em uma situação difícil, sozinho com aquela garota, sem assunto e sem intimidade o suficiente para quebrar o gelo. Olhei para o relógio, 03:00hs, a festa não estava mais tão animada assim, algumas pessoas já haviam ido embora e começava a aparecer os que tinham bebido demais, falando e rindo alto, com as gravatas afrouxadas e os copos sempre cheios.
Ela deixou sua taça em cima do parapeito, me olhou, deu um sorriso, e chegou bem perto. Um pouco mais baixa que eu, mas muito pouco devido ao salto alto. Dessa vez foi até meu ouvido e disse baixinho.
Eu já não sabia o que fazer, estava meio a um bombardeio de situações e pensamentos que por fim não me ajudaram em nada, era surpreendido a todo instante. Ela então direcionou seu olhar para meus lábios e fez o que eu queria ter feito assim que a vi. Me beijou, de forma romântica e sensual, um beijo memorável acompanhado de um perfume suave, uma pele macia, uma verdadeira conquistadora. Eu com as mãos na sua cintura, pude sentir sua respiração mais forte. Assim que decidiu parar, abaixou a cabeça e foi até sua taça de champanhe que estava vazia.
Ela não disse nada, só deu um sorriso, pegou a taça e foi em direção à festa que já não estava tão cheia assim. Enquanto eu fiquei ali parado, pensando no rumo que as coisas tomariam; no final das contas, aquela festa aparentemente chata e sem graça havia virado uma das melhores que já fui.
Olhei no relógio e já havia se passado um bom tempo desde que ela entrou para buscar sua bebida. Olhei para o salão, pouquíssimas pessoas e garçons já não estavam servindo. Procurei no salão com os olhos, não estava lá. Eu devia ter adivinhado, ela foi embora na mesma hora em que disse que buscaria o tal do champanhe.
Para mim, não restava muita opção, não sabia o nome dela, ou qualquer outra coisa que pudesse me levar até ela. Achei melhor ir para casa, assistir o jornal da noite.
2 anos ago Conto, Romance • Tags: Beijo, conto, Mulher misteriosa, Romance, Texto romantico